Õkãpomaɨ

A defesa da Terra Indígena Yanomami

Õkãpomaɨ, denominam os Yanomami, são aqueles que desafiam os riscos de uma viagem por caminhos desconhecidos para obter informações estratégicas sobre o inimigo, detectar a sua aproximação e prever eventuais ataques. Na nova luta que se trava na linha de frente do contato com o mundo dos brancos, essa é a estratégia dos Yanomami de hoje para defender o seu território, a maior Terra Indígena do país e uma das maiores áreas de floresta protegida do Brasil.

Em outubro de 2014 uma expedição percorreu mais de 50km na borda leste da Terra Indígena Yanomami, estado de Roraima, buscando sinais de degradação e pressão ambiental promovidas por invasores não-indígenas. A viagem foi composta por oito indígenas Yanomami, dois indigenistas do Instituto Socioambiental (ISA) e dois comunicadores, da Mídia NINJA e do 12PM Photographic, responsáveis pela documentação e registro da empreitada.

Neste especial criado conjuntamente pela equipe do ISA e do Mídia Ninja você vai encontrar um vídeo inédito, galerias de imagens que mostram o dia a dia da Expedição Õkãpomaɨ, informações atuais sobre o povo Yanomami, além de uma linha da tempo com a história de contato deste povo, histórico das expedições anteriores, e o diário de bordo com relatos dos momentos mais marcantes desta jornada.

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Os Yanomami

“A terra-floresta só pode morrer se for destruída pelos brancos. Os riachos sumirão, a terra ficará friável, as árvores secarão e as pedras das montanhas racharão com o calor. A terra-floresta se tornará seca e vazia. Os xamãs não poderão mais deter as fumaças-epidemias e os seres maléficos que nos adoecem. Assim, todos morrerão.” — Xamã Davi Kopenawa

Foto: Cláudia Andujar

Os Yanomami constituem o maior grupo indígena com menor grau de contato com a civilização ocidental. Formam uma sociedade de caçadores-coletores-agricultores do Norte da Amazônia com uma população estimada de 36.000 pessoas, distribuídas em aproximadamente 660 aldeias. Seu território abrange aproximadamente 23 milhões de hectares de floresta tropical contínua, situada em ambos os lados da fronteira Brasil-Venezuela na região do interflúvio Orinoco-Amazonas.

No Brasil, os yanomami somam aproximadamente 22 mil, vivendo na Terra Indígena Yanomami, localizada nos estados do Amazonas e Roraima, em uma área de 9,6 milhões de hectares.

Até o fim do século XIX, os Yanomami mantinham contato apenas com outros grupos indígenas vizinhos. No Brasil, os primeiros contatos foram esporádicos e ocorreram entre as décadas de 1910 e 1940, com extrativistas (balateiros, piaçabeiros, caçadores), soldados da Comissão de Limites, funcionários do SPI (Serviço de Proteção ao índio) e viajantes estrangeiros. A partir da década de 1960, Missões religiosas e alguns postos do SPI constituíram-se como verdadeiros polos de sedentarização, fonte regular de objetos manufaturados, mas também, muitas vezes, origem de graves surtos epidêmicos (sarampo, gripe e coqueluche).

O contato sistemático com o mundo não-indígena, porém, ocorreu somente a partir da década de 1970, com a abertura de um trecho da estrada Perimetral Norte, BR-210, (1973–76) e de programas de colonização rural (1978–79) que invadiram o sudeste do território yanomami. Estima-se que 80% da população diretamente impactada pela construção da rodovia tenham morrido. E, por isso, o caso da Perimetral Norte no território yanomami foi apresentado para a Comissão Nacional da Verdade, como um caso de violação de direitos humanos durante a ditadura militar no Brasil.

Nesse mesmo período, o projeto de levantamento dos recursos naturais RADAM BRASIL (1975) detectou a existência de importantes jazidas minerais na região. E, devido à publicidade dada ao potencial mineral do território yanomami se desencadeou um movimento progressivo de invasão garimpeira, que se agravou no final dos anos 1980. Durante a chamada “corrida do ouro” em Roraima, o número de garimpeiros no território yanomami foi estimado em 30 a 40.000, cerca de cinco vezes a população indígena ali residente. O caos sanitário decorrente da invasão garimpeira foi responsável pela morte de cerca de 30% da população yanomami.

No início da década de 1990, com a demarcação da TI Yanomami e seguidas operações da Polícia Federal (Operação Selva Livre), o garimpo foi reduzido significativamente. No entanto, durante as décadas de 1990 e de 2000, núcleos de garimpagem persistiram encravados na TI Yanomami, e, em 2008, com uma nova alta no preço do ouro no mercado internacional, iniciou-se um novo ciclo de invasões.

Em 2011, a Funai estimou que havia cerca de 3.000 garimpeiros atuando ilegalmente na TI Yanomami, operando 42 pistas de pouso ilegais e 300 balsas. Até julho de 2013, sucessivas operações da Funai, em parceria com exército e polícia militar, conseguiram retirar pelo menos 1.500 garimpeiros da TI Yanomami, desativar 22 pistas e afundar 84 balsas. No entanto, a manutenção do preço do ouro em altos patamares faz com que o negócio do garimpo ilegal continue sendo extremamente lucrativo, e consequentemente difícil de combater. A Polícia Federal Estima que o garimpo ilegal na TI Yanomami movimente mensalmente algo em torno de R$30 milhões.

Além do Garimpo, diversas outras fontes de pressão atuam sobre a Terra Indígena Yanomami, na cobiça pelos seus recursos. E, neste contexto, o Limite Leste da TI é uma das regiões mais vulneráveis. Sem fiscalização adequada pelos órgãos competentes, e com a expansão da fronteira agroextrativista, as áreas do entorno estão sendo ocupadas de forma cada vez mais intensa, de modo que, através de imagens de satélites observa-se o rápido avanço dessa ocupação em direção aos limites da TIY, com manifestas marcas de invasão.

A Expedição

Maior Terra Indígena (TI) do Brasil, com mais de 9,6 milhões de hectares, a TI Yanomami tem sofrido crescentes pressões da frente de colonização no estado de Roraima. Sobretudo no trecho conhecido como Limite Leste, de aproximadamente 700km de fronteira com áreas não indígenas. Os alvos são os recursos naturais abundantes na região: madeira, ouro e a própria terra, alvo de grilagem.

Diante do desafio de proteger o Limite Leste, a Hutukara Associação Yanomami com seus parceiros, ISA e Funai, deu início em 2012 a um projeto de expedições para percorrer toda este trecho em quatro etapas, com o objetivo de produzir um diagnóstico detalhado da região, e construir um plano de vigilância permanente.

Em 2012 foram monitorados mais de 150 km de fronteira da Terra Indígena, na região do Ajarani, nos municípios de Iracema e Mucajaí/RR. Na ocasião, foram constatadas invasões e o aumento da pressão sobre os recursos ambientais da TI por parte de diferentes agentes (pescadores, madeireiros, grileiros e garimpeiros). A expedição de 2012, que deveria atingir o Rio Apiaú, foi finalizada prematuramente devido a uma operação da Funai contra o garimpo ilegal que apreendeu mais de 50 garimpeiros e destruiu uma dezena de máquinas utilizadas para a extração de ouro.

No ano de 2013, saindo do mesmo Rio Apiaú, que não pode ser visitado no ano anterior, foram percorridos 115km, com trechos realizados por caminhada e via barco, durante 13 dias de esforço intenso. Nesta etapa também foram observadas inúmeras ameaças, como a presença de uma invasão de 30 hectares dentro da Terra Indígena, e diversos acampamentos de garimpeiros. Todavia, a viagem também foi marcada por paisagens exuberantes e momentos incríveis de convivência com os Yanomami na floresta, no improviso dos acampamentos e nos cardápios diversificados.

Em setembro de 2014, a expedição percorreu mais de 50 km de fronteira no Limite Lesta da TI entre os rios Uraricoera e Mucajaí, de 23 de setembro a 04 de outubro. A viagem teve início na Base de Proteção Etnoambiental da Funai, às margens do Rio Mucajaí e chegou próximo ao Igarapé do Arame, a 17km da meta proposta.

Apesar de não ter logrado atingir a margem direita do Uraricoera, a expedição foi bem sucedida na coleta de informações sobre a vulnerabilidade desse trecho da fronteira, que revelou estar em uma situação de baixa pressão.

No trecho percorrido não foi encontrado nenhum vestígio de invasão ou ameaça, com exceção da sua fragilidade a incêndios descontrolados com origem nos assentamentos localizados a poucos quilômetros da fronteira. A baixa pressão favorece a presença de animais de grande porte, observados em abundância durante o percurso.

Outro elemento de destaque foram os indícios da presença de um grupo yanomami com pouco contato com a sociedade envolvente (como um antigo roçado com pupunheiras). Além disso, a expedição ofereceu aos participantes não indígenas oportunidades incríveis de testemunhar caçadas, coleta de mel e frutas, pescarias, e outros momentos impressionantes que ilustram o excepcional conhecimento que os Yanomami possuem da floresta.

Ao adotarem estratégias de autodefesa para garantir a proteção dos seus territórios, diante da inércia do Estado em cumprir sua obrigação constitucional, os povos indígenas acabam por colocar suas próprias vidas em risco. Não são raros casos de ameaça e respostas violentas em retaliação a estes trabalhos, como o recente caso do assassinato de lideranças indígenas Ashaninka no Acre, mortos no final de agosto.

“Em 2013, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), 38% das pessoas assassinadas no campo eram indígenas.”

O desmonte das instituições públicas que deveriam realizar este trabalho, está associado a um conjunto de iniciativas conduzidas por grupos políticos, ligados aos interesses de latifundiários, empresas e confederações do agronegócio, que desde a aprovação do Novo Código Florestal, têm direcionado seus ataques aos direitos territoriais indígenas. O caso mais claro desse desmonte é o da Funai, que tem uma previsão de orçamento para 2014 de R$566 milhões, para ser aplicado em todas as 692 Terras Indígenas do Brasil, que somam 13% do território nacional, e 20% da Amazônia Legal Brasileira. Para a TI Yanomami, o orçamento da Funai fica entre R$1 milhão e R$2 milhões anuais. Somente a atividade ilegal de garimpo na TI Yanomami rende mais de R$360milhões por ano, segundo a Polícia Federal.

Na esteira de uma situação política desfavorável estão, por exemplo, o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 215, e o Projeto de Lei Complementar (PLP) 227/2012. O primeiro retira do Poder Executivo a exclusidade da obrigação de demarcar Terras Indígenas, dando poder de aprovação ao Congresso Nacional. O segundo considera de interesse público e pretende legalizar a existência de latifúndios, assentamentos rurais, cidades, estradas, empreendimentos econômicos, projetos de desenvolvimento, mineração, atividade madeireira, usinas e outros em Terras Indígenas.

Outro importante Projeto de Lei que afeta os direitos indígenas, é o PL 1610/1996, que dispõe sobre a mineração em Terras Indígenas. Trata-se de um projeto que não contempla adequadamente o direito de consulta aos povos, e é vago quanto às hipóteses de não implantação da atividade minerária. Não tem salvaguardas para povos isolados ou de contato recente, para os quais o perigo de contágio por doenças levadas pelos trabalhadores é enorme, e cuja dependência de um ambiente equilibrado é ainda mais vital. Além disso, o projeto fragiliza a avaliação ambiental do empreendimento, pois exige a elaboração de estudos aprofundados apenas ao final do procedimento, quando ele já está aprovado na prática.

Mesmo não sendo regulamentada a exploração mineral em Terras Indígenas, na TI Yanomami, por exemplo, 54,8% de sua superfície estão requeridos por dezenas de empresas mineradoras nacionais e internacionais.

Para os Yanomami, contudo, a proteção do seu território é considerada como fundamental não apenas para a garantia dos recursos necessários para a sua sobrevivência, mas também para o equilíbrio do mundo e o controle das forças que promovem a ordem cosmológica: a fúria dos trovões e dos ventos de tempestade, a regularidade da alternância do dia e da noite, a abundância da caça, a fertilidade das plantações, etc.

Na metafísica yanomami a floresta não é um mero espaço inerte de exploração econômica (o que chamamos de “natureza”). Trata-se de uma entidade viva, inserida numa complexa dinâmica cosmológica de intercâmbios entre humanos e não-humanos. Ela tem uma imagem essencial (urihinari), um sopro (wixia), bem como um princípio imaterial de fertilidade (në rope). Os animais (yaropë) que abriga são vistos como avatares dos antepassados míticos homens/animais da primeira humanidade (yaroripë) que acabaram assumindo a condição animal em razão do seu comportamento descontrolado, inversão das regras sociais atuais. Nas profundezas emaranhadas da urihi, nas suas colinas e nos seus rios, escondem-se inúmeros seres maléficos (në waripë), que ferem ou matam os Yanomami como se fossem caça, provocando doenças e mortes.

No topo das montanhas, moram as imagens (utupë) dos ancestrais-animais transformadas em espíritos xamânicos xapiripë, deixados por Omama para que cuidassem dos humanos. Toda a extensão de urihi é coberta pelos seus espelhos onde brincam e dançam sem fim.

Diários de Bordo

O antropólogo Moreno Saraiva Martins e o geógrafo Estevão Benfica Senra, do ISA, registraram em seus diários de viagem os momentos mais marcantes dos mais de 50km percorridos pelo Limite Leste da Terra Indígena Yanomami durante a Expedição Õkãpomaɨ em setembro de 2014. Além dos pesquisadores, a jornada foi composta por oito indígenas Yanomami e dois parceiros do Midia Ninja - Christian Braga (fotógrafo do Mídia Ninja); Danilo Arenas (videomaker da 12 PM). Saiba como foram os 10 dias de viagem, os desafios enfrentados pelo grupo e entenda a importância deste monitoramento para o povo Yanomami.

"É um grande desafio conseguir transmitir, por qualquer meio de comunicação, seja texto, foto ou vídeo, o que significa estar na floresta durante alguns dias. Sensações de deslumbre, de estar com todos os seus sentidos imersos em uma experiência que não tem paralelos com aquelas vivenciadas na cidade" (Moreno Saraiva).

23/09/2014

Deslocamento para a Base de Proteção e formação da equipe

“Para sobreviver na floresta basta um terçado, um isqueiro e um punhado de sal (e um Yanomami para saber operar tudo isso…)”

A expedição iniciou-se hoje com o deslocamento da equipe de Boa Vista, RR, para a Base de Proteção Etnoambiental da Funai, localizada às margens do Rio Mucajaí, no limite da Terra Indígena Yanomami. Para se chegar à Base, é preciso percorrer três horas e meia por estradas de terra em péssimo estado, no município de Alto Alegre, até um local conhecido como Sítio 14 (nome dado a um lote de um assentamento da reforma agrária), de onde se pode tomar uma canoa sem que se tenha que navegar por trechos encachoeirados. Desse ponto até a base são necessários ainda 40 minutos com um motor de 15 HP.

Saímos de Boa Vista: eu, Estêvão do ISA; Christian fotógrafo do Mídia Ninja; Danilo VideoMaker da 12 PM, parceira do Ninja; e Márcio, Yanomami da região do Ajarani. Tínhamos combinado que Abel Xirixana, Yanomami que vive na região, nos pegaria no Sítio 14, que fica na margem direita do Rio Mucajaí, Kayana u em língua ninam, uma das diversas línguas da família linguística yanomami. O ninam é falado em comunidades situadas na margem do Rio Mucajaí e na margem do Rio Uraricoera. E esse é o caminho que pretendemos fazer, percorrer o interflúvio entre os dois rios que correm relativamente paralelos e são dois importantes afluentes da bacia do Rio Branco.

Ao todo serão 75km, que tentaremos percorrer em 9 dias, prevendo que faremos o caminho de volta em 3. Ou seja, estamos prevendo 150km em 12 dias. A ida é muito mais demorada pois temos que ir abrindo o caminho na mata fechada.

Os Xirixana que nos acompanharão na expedição: Abel, Robinho e Jorge da comunidade do Pewau; Ivan e Timóteo do Uxiu; e Sabá e Marcos do Sikamapiu. Além destes, Márcio, Yanomami da região do Ajarani completa a nossa equipe, que fechou com 12 integrantes.

Hoje a Base de Proteção construída pela Funai é gerenciada pelos próprios Xirixana, organizados pela nova associação que os representa, a Texoli (Espírito do Beija-Flor que roubou o fogo da boca do jaracaré e permitiu que a humanidade tivesse o controle do fogo).

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A poucos quilômetros da Base da Funai, fica a cachoeira do Paredão, um trecho de imponentes corredeiras onde o trânsito pelo rio é praticamente impossível. Nesta região , foi identificado pelo governo federal potencial para construir hidroelétricas. Ainda não foi apresentado nenhum projeto, mas tramita no Senado Federal uma proposta (PDS 200/2007) que autoriza o aproveitamento do potencial hídrico, incluindo o potencial energético do rio Mucajaí, o que poderá causar impacto sobre o território yanomami.

O Rio Mucajaí e conhecido pelos Yanomami como Kayana u, que pode ser traduzido como rio veloz, ou rio de caída rápida. A velocidade, por sua vez, explica a coloração acastanhada do rio, como consequência dos sedimentos que carrega desde a sua cabeceira na Serra do Parima. Cercado por grandes árvores e amparado por rochas negras, o rio Mucajaí oferece um belo espetáculo nos fins de tarde junto as revoadas de araras e o crepúsculo do sol.

O grupo yanomami que vive nesta região é também conhecido como Xirixana, de autodenominação Ninam, e possui uma língua diferente dos yanomami das serras, localizados a oeste. Trata-se de um dos primeiros grupos yanomami a fazer o contato com a sociedade envolvente, ainda no final da década de 1950. Eles nos contaram que os primeiros contatos se deram logo abaixo da cachoeira do Paredão, depois que um grupo de homens desceu o rio Mucajaí em busca dos cobiçados objetos de aço, que eles conheceram por meio de trocas com outros grupos indígenas. Uma vez estabelecida a relação com os primeiros agentes da frente agroextrativista, vieram os missionários que abriram pistas de pouso e trouxeram a medicina dos brancos, desde então a vida dos Xirixana vem se transformando a um ritmo espantoso, com impactos na sua economia, sociabilidade e vida ritual. Não por acaso, foi aqui que foi construída este ano a primeira seção eleitoral da Terra Yanomami.

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Esse primeiro dia foi muito tranquilo. Passamos parte do tempo arrumando os equipamentos e insumos da expedição, e esperando Ivan chegar de sua missão para acertarmos os detalhes da viagem, com todos os participantes presentes.

Nesse ínterim, Abel nos fala dos isolados que talvez encontremos no caminho: seria um povo de fala ninam, como os do Mucajaí, que, durante a migração que deu origem ao território atual ninam, que primeiro ocupou a calha do Rio Uraricoera e em seguida a calha do Mucajaí, teriam ficado no meio do caminho, inacessíveis aos não-indígenas responsáveis pelos primeiros contatos com yanomami, e teriam permanecido relativamente assim até os dias de hoje. Teriam contatos esporádicos com fazendeiros que ficam próximos a seu território, que segundo Abel fica nas imediações do Igarapé do Arame, por onde passaremos. Abel deixou claro sua vontade de encontrá-los, afirmando que eles são amigos. Ele nunca os viu e nem sabe exatamente onde eles estão, mas conhece pessoas que passaram por seu território e encontram vestígios de sua presença. Eu fico muito inseguro com o significado de um possível encontro desses. Inseguro na mesma medida que me sinto empolgado: um contato com um grupo isolado.

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Estou com os Yanomami há 4 anos, e já naturalizei um monte de coisas relacionadas ao seu modo de viver e de se relacionar em sociedade e com o mundo que os envolve. Naturalizei inclusive para poder continuar trabalhando com eles, em um mínimo de conforto psicológico ao tentar tornar algumas coisas familiares. Mas a novidade da presença dos repórteres do coletivo Mídia Ninja, provocando novas visões, me trouxe de novo o deslumbramento no olhar. Saímos durante algumas horas durante a tarde para pescar e caçar na beira do rio. A exuberância da natureza e a forma como os Yanomami se relacionam com ela para obter alimentos é deslumbrante. Em algumas horas: um peixe de mais de 10kg, um cujubim abatido e um pôr-do-sol maravilhoso, com direito a bandos de araras sobrevoando nossas cabeças.

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O dia de hoje serviu para organizarmos os equipamentos e o rancho que serão levados na caminhada. Após o Jantar fizemos uma reunião para acertar os detalhes da expedição. Ivan, liderança dos Xirixana, iniciou a conversa rememorando as convocações nas diferentes comunidades. Disse que parte dos Ninam temeram participar, com medo da presença dos espíritos maléficos que habitam o trecho que vamos percorrer. Segundo eles, na floresta que separa os dois rios vive uma besta chama Pore. Uma espécie de macaco de proporções monstruosas, com as patas viradas para trás. Somente a sua proximidade já é suficiente para causar mal ao seu alvo, que é invadido por uma tontura repentina.

Pore, o ser sobrenatural, duplo de um ser humano, a sombra, que por algum motivo não vai à dimensão a ele destinada após a morte da pessoa, e fica por esse mundo, assumindo a forma de um ser peludo e deformado, com um potencial enorme de causar mal aos seres humanos.

Diante dessa ameaça os Xirixana convocaram seus xamãs que, para garantir uma viagem tranquila deverão trabalhar a nosso favor durante os dias da expedição.

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Em Boa Vista, quando perguntamos a Armindo, da Hutukara, um nome para a expedição, uma de suas sugestões foi justamente Pore, pois esse ser demarca seu território jogando feitiços em pessoas que tentam adentrar em seus domínios.

24/09/2014

Início da caminhada

“Mastigar carrapato faz com que vc não sinta sede” (Ivan Xirixana)

Iniciamos hoje a nossa caminhada, o objetivo era atingir a linha seca (linha demarcatória da Terra Indígena), depois de margear o igarapé que desemboca no Mucajaí ao lado da Base da Demarcação. Seguimos paralelamente ao igarapé, fazendo poucos desvios, para evitar passar por baixões de vegetação densa. Estudamos o mapa para evitar os baixões que apareciam como manchas de verde claro na imagem satélite, e conseguimos evitar longas horas cruzando capinzais, difíceis de cortar e andar. Além dos capinzais, enfrentamos capoeirões e grandes áreas ocupadas por bananas-do-mato (heliconias). Neste trecho vimos poucas áreas de floresta aberta com o sub-bosque limpo. De modo geral, a vegetação aqui se apresenta menos exuberante e diversa, devido aos impactos dos grandes incêndios que atingiram Roraima em 1998 e 2003.

Em 1998, 12.000km2 de floresta primária foram completamente atingidos pelo fogo, e em 2003 o estrago foi de proporções semelhantes, apesar de não ter sido devidamente mensurado. Em ambas as ocasiões o fogo se iniciou fora do território yanomami, mas ao se descontrolar atingiu sua floresta, que estava vulnerável em função do prolongamento do período seco.

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É um grande desafio conseguir transmitir, por qualquer meio de comunicação, seja texto, foto ou vídeo, o que significa estar na floresta durante alguns dias. O exuberante e o exasperante competem. Sensações de deslumbre, de estar com todos os seus sentidos imersos em uma experiência que não tem paralelos com aquelas vivenciadas na cidade.

Os cheiros são outros: uma grande quantidade de matéria orgânica misturada com uma umidade enorme criam uma sensação olfativa única. Essa mesma umidade faz com que a pele sue excessiva e constantemente. E essa sensação de estar molhado o tempo todo potencializa as agressividades do meio: insetos de todas as ordens passeando por sua pele e não raro picando, espinhos em todos os lugares, fazendo com que o ideal seja caminhar por entre um emaranhado de formas vegetais sem tocar ou ser tocado por qualquer tipo de arbusto.

Da visão: não há horizonte para lado nenhum. O céu é praticamente deduzido a partir de pequenas manchas azuis que se vislumbram por entre a folhagem densa. E, comparar a destreza de se conseguir enxergar algo no meio do emaranhado de folhas que os Yanomami tem com a nossa incapacidade de ver cinco metros a frente de nosso nariz, é uma injustiça.

A audição: mais uma comparação impossível de ser feita: os nossos ouvidos, treinados a não captar todas as sutilezas de um ambiente, com o simples intuito de não nos enlouquecer no barulho ensurdecedor de nossas cidades, não consegue captar nem de longe o que os nossos companheiros aqui criados conseguem.

Sobre o paladar, talvez seja onde mais nos damos bem: aqui experimentamos sabores muito diversos daqueles que somos acostumados na cidade. Não porque os temperos são diferentes, pois aqui usamos apenas sal. Mas porque os ingredientes são muito diversos daqueles que conhecemos. Desde um pequeno coquinho, de sabor suave, que é colhido fortuitamente durante a caminhada, até a carne cozida apenas com sal de um aracuã ou de um cujubim, recém abatidos. Ou mesmo de pequenos peixes, que nunca serão encontrados em super-mercados, pescados e tratados no período de tempo em que se acende o fogo para assá-los.

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E aqui estou, após um jantar exatamente com esses ingredientes, em nosso primeiro acampamento dessa expedição. Foram 7km de caminhada, percorridos em aproximadamente 8 horas. Somos 4 não-indígenas e 8 indígenas aqui da região do rio Mucajaí, espalhados em uma pequena área que limpamos na beira de um igarapé, todos deitados em suas redes. Esse igarapé é o limite natural que faz a divisa da TI Yanomami nesse trecho todo que percorremos hoje. Viemos caminhando paralelo a suas margens. Amanhã devemos logo durante o início da caminhada atingir a linha seca que faz o limite da TI, que começa a menos de 1km de onde estamos.

Apesar da tranquilidade da caminhada os Yanomami reclamaram um pouco do peso de suas mochilas. Quando saímos hoje de nossa base, dividimos a alimentação que usaremos nos próximos dias, dando em média 5kg para cada um. No mundo yanomami são as mulheres as responsáveis por carregarem os maiores pesos durante as expedições de caça ou de visita a outras comunidades. Mulheres são resistentes e homens são velozes. É assim a concepção yanomami das diferenças de habilidades entre os gêneros.

Acampamos às 16 horas próximo ao mesmo igarapé que margeamos o dia todo, depois de percorrer cerca de 8km da fronteira. Seguimos em fila indiana com dois ninam no final da trilha, zelando pelos brancos que volta e meia se perdiam em falsos caminhos. Abel e Sabá fizeram este papel, coincidentemente os dois mais velhos da nossa equipe. O primeiro seguia acompanhado de sua espingarda e o segundo, taciturno, com seu arco e flecha.

Parte de minha preocupação e também de meu companheiro de trabalho Estêvao recai sobre os dois repórteres do Mídia Ninja que estão conosco. Eles não têm nenhuma experiência na floresta, e aparentemente não estão em sua melhor forma física. Mas o que falta em evivência e preparo, sobra em juventude e vontade. Christian tem 23 anos e Danilo tem 21. Venceram o primeiro dia. Visivelmente exaustos. Mas tranquilos e animados com toda a situação. O que me preocupa é que o cansaço faz com que você fique menos atento ao se movimentar na floresta, fazendo que aumente muito a possibilidade de se machucar.

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O fato notável do dia de hoje ficou por conta de várias touceiras de flecha (Gynerium sagittatum) que avistamos quase ao final do trajeto. A flecha é uma gramínea alta, uma espécie de capim, usada para se fazer o corpo das flechas usadas por eles na caça. Essas touceiras são geralmente plantadas em roças, e resistem mesmo depois que a roça é abandonada. Assim, marcam locais onde roças já foram feitas. Mas essas flechas que avistamos não ficam perto de nenhuma comunidade, nem atual nem antiga, ao menos do que conhecem os nossos companheiros de viagem. E além do mais, os Yanomami encontraram vestígios de retirada dessas flechas. Como os yanomami do rio Mucajaí que estão conosco não usam essa região onde estamos para nada, caça ou coleta, a suspeita recaiu sobre os isolados do Igarapé do Arame, que viveriam ao norte de onde nos encontramos, exatamente para onde estamos indo.

Minha insegurança com esse possível encontro com índios isolados tem duas naturezas. A primeira é o medo de um possível confronto entre os Yanomami que estão conosco e eles. Os Yanomami são um povo guerreiro, e mesmo que os nossos companheiros de viagem não tenham nenhuma intenção bélica, não é possível saber como a chegada de um grupo estranho ao território de outro grupo será interpretado pelos anfitriões. Mesmo que eles falem a mesma língua, como parece ser o caso. Inclusive por isso mesmo: aqueles que você pode compreender mas que não estabelece relações de troca com você, é um inimigo por definição.

Outra coisa que me dá medo é o fato de que a atitude que a nossa sociedade, pelos menos por parte do governo, tem tomado com os índios isolados é a de respeito a seu isolamento voluntário (voluntário pois não existe no Brasil e talvez em toda a Amazônia, povos que estejam sem contato permanente ou esporádico com as sociedades nacionais que não o sejam por opção). E fazer um contato com um grupo isolado seria possivelmente o início de relação com a nossa sociedade. Os nossos companheiros já nos alertaram que querem contatá-los para falar sobre a possibilidade de que eles tenham atendimento à saúde. Os Yanomami que estão conosco afirmam que eles já mantêm contatos esporádicos, possivelmente relações de troca, com fazendeiros/assentados que moram próximos a Terra Indígena.

Dada a curiosidade e a empolgação de nossos companheiros ao falarem sobre o assunto, creio que seria impossível de dissuadi-los de seguirem alguma pista mais concreta de sua existência.

25/09/2014

Em busca de água

Fomos acordados hoje, pouco antes de amanhecer, por dois tiros: dois cujubins, que nos serviram de almoço. Junto com um peixe purake e farinha. Começamos a caminhar por volta das 08:00 h, e no final do dia, às 17:30h encontramos um bom local para acampar. Percorremos nesse meio tempo 5,5km.

Nesse segundo dia de caminhada a paisagem conservou-se semelhante a do dia anterior: campos de banana-do-mato, cipoais e capoeirões, intercalados por poucas áreas de floresta aberta nas áreas de serra. Estes ambientes contribuem para que a viagem fique ainda mais cansativa e monótona, pois além de exigirem mais golpes de facão para limpar o caminho, um mormaço opressor pesa sobre nossos corpos durante a travessia.

Em um desses momentos de calor intenso, Jorge golpeou uma planta de caule roxo coberto por uma penugem espessa e nos apresentou ao que eles chamam de limonada da floresta. Foi como se estivéssemos experimentando o sabor exatamente oposto ao da cana-de-açúcar, de um azedo agudo, mas que não deixava de ser deliciosamente refrescante.

Falando em novidades do paladar, hoje experimentamos um sabor ímpar: mel de uma espécie de abelha melípona. O que comemos na realidade nem sei se pode ser chamado de mel. Não era líquido. Em meio a uma estrutura de cera marrom escuro, pequenas bolsas de uma substância pastosa, que variava de um amarelo claro a um ocre escuro, levemente doce como sabor que ia de um cítrico levemente ácido a uma mistura doce de frutas amazônicas. Difícil descrever um sabor com o qual o paladar não está acostumado. Mesmo as flores, matéria prima do mel, nos são desconhecidas. A cada nova bolsinha desse mel pastoso que provava, uma nova surpresa agradável assaltava o meu paladar. E pensar que são centenas de espécies de abelha do subgênero melípona que são encontradas na Amazônia.

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Devido a um inverno de poucas chuvas, a maioria dos igarapés que cortamos estava quase que completamente seca, com escassas poças de água parada pouco convidativas ao consumo. Por isso, tivemos certa dificuldade de encontrar um bom lugar para tomar o almoço e um bom sítio para passar a noite. No fim da caminhada cheguei a ficar preocupado com o humor dos nossos guias, que ansiosos perguntavam para onde o GPS apontava a existência de um igarapé. Disse a eles que o aparelho não podia nos ajudar muito nesse assunto, e que, em se tratando de floresta, não era aconselhável confiar na tecnologia dos brancos. Ao abdicar da crença no nosso aparelhinho, em menos de 20 minutos Ivan encontrou um igarapé decente, se valendo apenas da geografia yanomami.

Por várias horas da caminhada de hoje atravessamos uma área cerrada com muitas heliconeas. São plantas bonitas, com flores muito vistosas, e a cada folha cortada por golpes de terçado podemos observar a estrutura simples de seu sistema vascular. São esses vegetais mais simples que compõem a sucessão primaria de uma floresta. Vieram após os incêndios que atingiram essa região no inicio da década de 2000. Fiquei pensando que não é a complexidade que consegue vencer situações extremamente adversas. E pensando nisso me veio à cabeça a aparente simplicidade da tecnologia yanomami e a capacidade que eles têm de enfrentar situações extremamente adversas. Mas de fato essa simplicidade é aparente. A relação que os Yanomami têm com a floresta está baseada em conhecimento profundo, que sempre me surpreende. É um conhecimento ligado diretamente à sua forma de ver o mundo. Com poucos instrumentos os yanomami conseguem viver naquilo que chamamos de natureza ou de floresta, e que para eles significa Terra, casa, sustento, fonte de perigo e de satisfação ou contentamento.

E, vendo tudo isso, penso que se a nossa sociedade continuar a destruir esse mundo que conhecemos, e tudo indica que vai, os Yanomami, e os povos indígenas de forma geral, sejam de fato os mais adaptados a sobreviver ao fim do mundo.

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Em tempo: o nosso jantar foi um cozido de jabuti, acompanhado de farinha. Quem nunca comeu fígado ou ovos de jabuti, não tem a mínima ideia do que estou falando quando digo que transcendemos nosso paladar com ingredientes da floresta.

26/09/2014

“Coração em pedaços” ou “Como um tiro pode proteger a Floresta?”

A fartura na floresta era tanta que, como se não bastasse as costelas de anta, para o jantar, os Yanomami ainda abateram uma arara e uma queixada, que atravessou com seu bando nosso caminho, e quase atacou o fotógrafo que vacilou com a demora para subir na árvore quando os porcos investiram contra a gente.

Estamos atravessando uma região relativamente alta, de relevo movimentado, de onde nascem diversos cursos d’água que se distribuem radialmente. Próximos ao divisor de águas das bacias dos rios Uraricoera e Mucajaí. Hoje acampamos em um tributário do Mucajaí, mas a menos de 5 km daqui os igarapés já são drenados pelo Uraricoera. O caminho oscila entre áreas altas de floresta limpa, onde se pode ver macacos brincando no alto das árvores, e baixões de vegetação cerrada, e por isso o ritmo da caminhada foi bem variável. Quando nossa marcha não era interrompida por cipós, era interrompida pela presença de presas, que os yanomami não hesitavam em caçar. Hoje acordamos no meio da noite com um tiro, e logo depois tivemos a notícia de que uma anta tinha sido abatida. O animal nos presenteou com tanta carne que parte do grupo teve que ficar no acampamento a moqueando.

A anta, que durante a noite passou muito perto o acampamento, acabou sendo ouvida pelos Yanomami que dormiam. Abel, xamã de sua comunidade, disse que foram os seus espíritos auxiliares, seus hekura, que o acordaram, prevenindo-o da presença da anta. Ele então acordou discretamente um caçador mais jovem, que prontamente abateu o animal. Uma anta de bem mais de cem quilos.

A reunião do grupo se deu mais tarde, próximo ao almoço, quando pudemos desfrutar de uma incrível farofa de picadinho de coração, preparada pelos yanomami.

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Como um tiro pode proteger uma floresta? Foi o que me veio à cabeça quando Abel acertou uma arara, que comeríamos cozida, junto com um mutum, ao final do dia. A Terra Indígena Yanomami, a maior do Brasil, com 9,6 milhões de hectares, tem essa dimensão monumental justamente para que o modo de vida caçador e coletor dos yanomami seja sustentável. E assim vivendo, usando os recursos da terra, se movendo atrás desses recursos, garantem que esses recursos sejam protegidos e também sustentáveis. Ou seja, é a floresta que sustenta o modo de vida yanomami e o seu modo de vida que protege a floresta. Estudos feitos sobre a proteção de Áreas Protegidas no Brasil demonstraram que as Terras Indígenas são mais eficientes em proteger a floresta do que as Unidades de Conservação. Os índios só caçam porque é sustentável a forma como eles utilizam esse recurso.

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A caminhada de hoje foi mais tranquila que no dia anterior. Percorremos cerca de 4,5km das 08h as 15h. Ontem terminamos a caminhada somente as 18h, quando encontramos um igarapé para tomar banho e ter água para beber e cozinhar.

Com receio de não encontrar água, resolvemos acampar mais cedo e aproveitar um igarapé que encontramos pouco antes de nossa meta diária.

Logo que encontramos esse igarapé onde dormiríamos, os Yanomami escutaram um grande bando de queixadas. Timóteo foi atrás deles, e desferiu um tiro sem sucesso. Ivan foi atrás do bando que fugiu. Os yanomami classificam os bandos de queixada como ‘bravos’ ou ‘mansos’. Mansos são aqueles que fogem quando confrontados e bravos são aqueles que investem contra quem os ameaça. O bando em questão era um bando bravo, e acabou por investir contra o Ivan, que conseguiu acertar um deles, mas mesmo assim foi cercado pelo bando de centenas de porcos, e teve que subir em uma árvore para escapar dos seus afiados dentes caninos. Uma presa de queixada é extremamente afiada e tem seguramente mais de 5cm de comprimento.

Por fim, Ivan acabou por afugentá-los. Aconteceu, porém, que eles vieram em disparada justo onde nós estávamos. A reação ao escutar a vara de queixadas vindo em nossa direção, fazendo um som de trovão ressoar pela floresta, foi a de largar toda a nossa tralha no chão. Foi o tempo de subirmos em árvores e a vara de centenas de porcos passar em estouro a poucos metros de nós.

Tivemos sorte, pois a dupla de repórteres do Mídia Ninja que está seguindo conosco, com pouca experiência na floresta, não conseguiu subir em uma árvore. Por muito pouco não aconteceu um acidente.

Duas queixadas foram abatidas e depois de tratadas tiveram suas costelas assadas. Juntamente com o mutum e a arara abatidos anteriormente, a carne de queixada compôs um pequeno banquete para revigorar os 12 corpos já cansados de 3 dias de caminhada intensa.

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No acampamento, enquanto o jantar era preparado, entrevistamos Abel. Perguntamos a ele sobre o Pore, que tinha sido tema de conversa na Base da Funai.

Quando uma pessoa morre e sua alma não transcende para outro plano de existência, sua sombra se transforma no Pore, que continua vivendo nas florestas desse plano de existência. Ele tem o corpo semelhante ao de um humano, mas com pelos pelo corpo, e careca na parte frontal da cabeça. Tem garras e dentes enormes e se alimenta de seres humanos. Sentem o cheiro de suas presas, principalmente quando fogueiras são acessas em acampamentos na floresta.

No primeiro dia de caminhada Abel disse que em uma sessão xamânica entrou em contato com seus espíritos auxiliares, xapiri pë, com objetivo de nos conseguir proteção contra este ser. Os Pore quando orientados por um xamã também podem fazer as vezes de espíritos auxiliares. Convivem com os xapiripë, e podem ser por eles influenciados.

Segundo Abel, depois dessa sessão de xamanismo, nós estávamos sendo escoltados de longe por dois Pore, que estariam fazendo a nossa segurança, agindo como um espírito auxiliar xamânico. Durante nosso caminho Abel nos indicou já uma série de vestígios desses nossos protetores: uma árvore que cai a algumas dezenas de metros do nosso grupo durante a caminhada ou folhas amassadas no chão em um padrão que nenhum animal conhecido faria.

27/09/2014

Mal estar na floresta

Hoje foi um dia de extremo esforço físico para parte da equipe não-indígena. Estêvão, que já vinha se queixando de uma diarréia, ficou bem debilitado e sofreu bastante durante a caminhada. Vomitou algumas vezes e teve que se hidratar com soro caseiro (água, sal e açúcar) que ele mesmo preparou.

Apesar de não ser o maior admirador da culinária yanomami, normalmente eu como com verdadeiro prazer um mutum assado, carne de anta cozida ou mesmo fígado de jabuti moqueado na folha de bananeira. Mas, por algum motivo que ainda não sei bem qual, não consigo me alimentar desde o jantar de ontem, e hoje passei o dia com as pernas bambas de fraqueza e a vista embaraçada pela fome. Agora na rede, sinto o cheiro da carne assando no jirau e meu estômago se embrulha. Desde ontem que meu intestino também não funciona bem, e para cessar a diarreia, os yanomami prepararam uma mistura com casca de cipó de coloração rosa, que me fez vomitar as tripas minutos depois de tomá-la. Para piorar, hoje caminhamos pela região mais acidentada que a expedição percorreu até agora. Vertentes ladeirentas, e igarapés tão encaixados que tivemos que escalar alguns barrancos de até 3 metros para seguir na direção do Uraricoera. Se por um lado, este tipo de relevo torna a viagem mais difícil, ele também nos oferece belos cenários com grandes matacões negros vestidos de um fino bordado de líquens e musgos. Ademais, os cipoais ficaram menos extensos e pode-se sentir uma revigorante brisa que sopra na mata de terra firme.

À medida que a expedição evoluía, Timóteo, o mesmo que preparou o meu remédio com cipó, espantava os maus espíritos mastigando e depois cuspindo no ar uma planta mágica que lhe foi dada por sua mãe. No intervalo dos cuspes, ele declamava palavras que não consegui entender, mas que me pareciam possuir algum efeito xamânico. Estamos adentrando em uma região tida como perigosa pelos Xirixana, nessas florestas vivem os fantasmas dos seus antepassados que não puderam ser esquecidos.

Além disso, as botas que ele está usando e também as botas de Danilo, o video maker da equipe Mídia Ninja, soltaram parte da sola. A solução foi amarrá-la com cipós e barbante. Impressionante como equipamentos que são feitos para o mato não sobrevivem alguns poucos dias à floresta amazônica.

O único calçado que é unanimidade entre os Yanomami é a sandália havaiana. Agora estão todos usando botas de borracha, estilo 7 léguas, que demos a todos. Mas a durabilidade e a versatilidade das havaianas são imbatíveis.

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Percorremos hoje mais de 5,5km. O rendimento, apesar do ritmo lento que o cansaço dos não indígenas imprimia, foi bom pois ontem Ivan abriu mais de 1km de trilha depois que paramos, adiantando muito a caminhada de hoje.

Chegamos as 15:30h no local onde tínhamos previsto que acamparíamos, e o grupo se dividiu em dois. Um que ficou montando o acampamento e fazendo comida e outro grupo que foi na frente abrindo caminho, adiantando trabalho de amanhã.

O jantar de hoje foi: carne de jabuti, costela de queixada assada, suco de bacaba e um ensopado de jacu (Penelope marail) e jacamim (Psophia crepitans), duas das grandes aves amazônicas. No caminho ainda avistamos um veado e vários bandos de queixada.

A região em que estamos é uma das mais intocadas da TI Yanomami, pois não existem comunidades que utilizam diretamente os recursos dessa região e estamos bem distantes da fronteira de desmatamento, pois por aqui a TI faz fronteira com a Floresta Nacional (Flona) Roraima, uma Unidade de Conservação sob responsabilidade do ICMBio.

Digo que os Yanomami não usam diretamente pois para que seja sustentável o uso que eles fazem do seu território é necessário que existam áreas de estoque de recursos, que tanto sirvam para a reprodução dos animais de caça quanto para um uso direto no futuro, dentro de um esquema de uso rotativo de diferentes áreas dentro do território.

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Hoje atravessamos o divisor de águas entre a bacia do rio Mucajaí e do rio Uraricoera. São dois grandes rios que correm relativamente paralelos, no sentido oeste -> leste. Atravessamos um pequeno maciço de montanhas. Por isso a caminhada foi mais cansativa, pois praticamente não andamos em áreas planas. As regiões montanhosas, no entanto, abrigam matas mais altas em suas encostas, o que faz com que a caminhada renda mais, pois não é preciso abrir caminhos em locais muito cerrados.

Marcos, Yanomami que nos acompanha encontrou um pedaço de metal no chão, escrito M057. Possivelmente uma parte de um marco de delimitação colocado pela Funai.

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No início da noite Abel nos brinda com um canto ninam que narra a história de como os rios foram nomeados nos tempos mitológicos, em que não havia a diferenciação entre humanos e animais. Foi então que o Mutum deu nome a todos os acidentes geográficos do mundo, incluindo os rios. No canto, a cada rio que ele nomeava, intercalava o canto grave do mutum.

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Conhecer é nomear. Nenhum dos Yanomami que estão conosco conhece essa região. Abel se atirou na tentativa de dar ordem ao desconhecido, invocando seu ancestral que organizou uma realidade que ninguém conhecia, pois não havia sido nomeada.

28/09/2014

A Expedição se divide: a decisão de voltar

Hoje, antes mesmo de o acampamento despertar, eu acordei com a convicção de que a expedição tinha terminado para mim. Passei uma madrugada de “rei”, e amanheci muito pior do que ontem. A decisão de voltar hoje era importante por que para retornar para a Base teria que caminhar de volta quase 30 km, e se avançasse não só a minha saúde poderia piorar, como a distância de um atendimento médico aumentaria.

Logo cedo avisei o grupo da minha decisão e Ivan indicou Sabá para me acompanhar na volta. Marcio, em seguida, disse que também não estava bem e quis retornar conosco. Como a equipe toda só levava duas panelas na viagem, tivemos que voltar sem utensílios para cozinhar, levando apenas uma sacola de arroz cozido e uma espingarda com duas balas para dois dias de viagem. Com esse cardápio não é preciso dizer que o entusiasmo dos yanomami que iam comigo não era dos melhores. A sorte é que não faltou jabuti pelo caminho, cujo fígado podia ser assado em varetas no nosso acampamento.

A volta, como sempre, teve um ritmo bem mais acelerado que a ida, e mesmo estando fraco e, por isso, vagaroso, conseguimos avançar bastante, esticando a nossa viagem até a chegada da noite, quando acampamos próximo ao local que almoçamos no segundo dia de caminhada. Passei mais um dia sem conseguir comer algo substancial, e o que me sustentou foram algumas bolachas de água e sal que trazia comigo para emergências. Na rede, ao final do dia, tive febre e apesar do cansaço mal consegui dormir.

Estamos muito perto da metade do caminho que temos de percorrer. Os dramas pessoais do dia anterior acabaram tendo consequências que eu não esperava. Logo na primeira hora da manhã Estêvão anuncia que não pode mais seguir. Sua diarreia persiste. Provavelmente uma infecção intestinal. Já há dois dias que não se alimentava direito e com a diarreia piorando corria o risco de ficar seriamente desidratado.

Acompanhado de dois Yanomami começou a viagem de volta, em direção a nosso ponto de partida na beira do rio Mucajaí, e possivelmente de lá rumo a comunidade Yanomami mais próxima, Sikaimapiu, onde existe um posto de saúde, que poderia fazer os primeiros socorros e também uma pista de pouso, se for o caso dele ser removido de avião. A comunidade fica a 3,5h de barco rio acima, partindo da beira do rio Mucajaí, onde ele deve chegar amanhã.

Logo depois de tomarmos um desjejum, partimos. O grupo que era de 12 pessoas, agora tinha 9.

No entanto, 2 horas de caminhada foram suficientes para nos mostrar que Danilo, do Mídia Ninja, não poderia seguir com a sua bota na situação que estava. Mais da metade da sola dos dois pés da bota tinha se descolado. Quando a bota começou a se deteriorar ou, derreter melhor dizendo, Danilo tentou fazer um reparo com silver tape, que obviamente não aguentou. Depois os Yanomami amarraram a sola com tiras de envira, uma fibra retirada da casca de uma árvore: tecnologia Yanomami para reparar uma tecnologia ocidental, feita na China. Não deu certo, pois a sola continuou descolando.

Aqui vale um parêntese: desde que comecei a trabalhar com os Yanomami na floresta, há 04 anos, já tentei usar 5 diferentes botas ou tênis indicados para caminhadas no mato. Todos os 5 soltaram a sola na primeira ou segunda vez que usava. Nessa expedição, Danilo e Estêvão tiveram seus calçados novos, em seu primeiro uso, danificados em 4 dias de caminhada na floresta. Botas que seguramente custaram mais de R$500,00.

Isso me leva a pensar que são poucos os equipamentos de fato aptos a condições extremas de uso que a floresta impõe. Eu estou usando um coturno, desses que os militares usam, e que, apesar de machucar um pouco os pés, parece que vai aguentar.

Voltando ao caso da bota do Danilo. Logo na primeira vez que paramos para reamarrar as tiras de envira que tinham se soltado, Ivan Xirixana, que assume uma liderança do grupo indígena e acaba sendo o nosso principal interlocutor, nos dá conta que não seria possível que Danilo continuasse. Com a bota naquela situação as paradas seriam constantes, atrasando todo o grupo, e a tendência seria que seu uso fosse inviável dentro de um dia no máximo.

Conversamos um pouco e vimos que a coisa mais sensata a fazer seria que Danilo voltasse de onde estávamos. E logo que decidimos que Danilo partiria Ivan disse que Christian, o repórter fotográfico também deveria voltar, pois ele não aguentaria o ritmo que os Yanomami gostariam de imprimir na caminhada. Pelo que entendi, Ivan calculou que não compensava atrasar toda a expedição por causa de somente uma pessoa. Quando éramos 4 não-indígenas em um ritmo mais lento, o atraso se justificava pelo número de pessoas. Mas apenas uma pessoa atrasando começou a não fazer sentido para os Yanomami. Principalmente na viagem de volta. Já participei de algumas viagens de ida e volta na floresta com os Yanomami, e o ritmo de retorno sempre é muito mais rápido que o da ida, pois o caminho já está pronto e há a ansiedade de se chegar ao ponto de partida.

Se fiquei lisonjeado porque Ivan considera que eu consigo seguir o ritmo de viagem com eles, confesso que também fiquei preocupado em não conseguir seguir o ritmo que eles devem impor em nosso retorno.

E sobretudo fiquei triste pelo retorno prematuro da equipe de registro audio-visual. Eles traziam um olhar de deslumbramento sobre o mundo Yanomami que há um certo tempo já não tinha, e creio que estavam conseguindo fazer um registro das diferenças que esse universo da terra-floresta yanomami tem do mundo não-indígena.

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Mesmo com as paradas que tivemos no início do dia, hoje a caminhada foi muito rentável por causa do ritmo intenso. Creio que um grupo menor, agora de 06 pessoas, se movimenta mais rápido. Vencemos 8km de limite da TI, durante todo o dia margeando um igarapé.

Está sendo muito interessante ver como os Yanomami conseguiram dominar o uso do gps para se guiar. Estamos andando em regiões onde não há caminhos abertos e que eles não conhecem. A todo o momento é preciso fazer uma ponderação, avaliando a direção que temos que seguir e as dificuldades do caminho, como um trecho extremamente cerrado ou um relevo muito acidentado.

Na nossa dinâmica de caminhada, o yanomami que vai na frente e que tem o árduo trabalho de abrir o caminho, tem levado o gps para se guiar, com muito sucesso. Vale dizer que não é só o primeiro da fila que abre o caminho. Todos que vêm atrás tratam de continuar abrindo o caminho o melhor possível, para que na volta ninguém nem precise empunhar um terçado.

Voltando ao dia de hoje: quando já procurávamos um local para acampar, não tínhamos conseguido nenhuma carne pra comer. Há menos de 2 minutos do local onde acampamos, os Yanomami pararam e se dividiram. Em menos de cinco minutos estávamos no acampamento com um jacu e um jacamim sendo preparados. Fiquei impressionado, me pareceu magia. Foi muito cronometrado.

Chegando no acampamento, na beira do igarapé que faz a divisa da TI, que tem aproximadamente 1,5m, enquanto armávamos nossa rede, os yanomami viram 2 peixes enormes subindo o curso d´água. Enquanto Ivan empunhava a espingarda, mirando para um dos peixes, os demais fizeram lanças com pedaços de madeira, e em questão de segundos já estavam todos na beira d’água, prontos para matar os peixes. Em uma ação impressionante, 2 lanças, quase ao mesmo tempo atravessaram o corpo de uma traíra de mais de 5kg.

Pronto: em mais um passe de mágica temos, além de nosso jantar de hoje o almoço de amanhã garantidos.

29/09/2014

Pra quem retorna: da floresta para o hospital — Pra quem fica: surpresas da Floresta

No último dia, faltavam apenas 10 km para chegar a Base, e por isso, mal clareou o dia já estávamos com as mochilas nas costas. O ritmo foi ainda mais intenso do que o de ontem, pois os yanomami tinham acabado com toda a comida no último jantar.

Foram poucas paradas, só mesmo para tomar água e tentar caçar alguma coisa com a munição que restava. Em uma dessas, Márcio descobriu uma sucuri submersa na água barrenta do igarapé que pretendíamos usar como fonte de água. Ela tentou agir, mas eles foram mais rápidos e a golpearam com o terçado. Com um corte violento no lombo ela saiu rastejando à jusante e nos pudemos seguir a viagem sem maiores problemas. Quando chegamos na Base já era meio dia, e por isso tivemos certa dificuldade de comunicar com o pessoal de Boa Vista pelo rádio. Mas, com alguma insistência conseguimos resposta do outro lado, e finalmente pude pedir a minha remoção. Quando cheguei em Boa Vista, fui conduzido ao hospital e internado para tomar soro. E, só então é que fui descobrir que durante todo este tempo eu na verdade sofria dos sintomas da dengue, provavelmente causada pelos maus espíritos da cidade e não da floresta.

Esta parte da expedição foi mais tranquila, estando a área mais livre de pressões externas, o que nos permitiu além de nos assegurarmos da fiscalização geral, nos aprofundar em alguns aspectos não tão explorados nas expedições passadas. Perdoem-me os possíveis leitores desse relato se vou me repetir, mas como um apreciador de boa comida, não posso deixar de voltar ao tema dos sabores.

Primeiro: não me recordo se já comentei sobre a carne que comemos aqui. Sabor e textura são incomparáveis com aquilo que comemos na cidade. A própria forma de comer, usando as mãos e os dentes para tirar pedaços, torna de fato experiência incomparável. Mas é uma experiência excepcional, que só é possível porque estou aqui, acompanhando os Yanomami em uma atividade de fiscalização de sua Terra, dividindo com eles as refeições.

Existe, no entanto, uma série de outros sabores e texturas de alimentos de origem vegetal que também propiciam experiências únicas. Começo pela castanha do Brasil, ou castanha do pará, consumida fresca. Para que essa castanha seja retirada da casca para ser comercializada, primeiro é necessário que ela seja desidratada, para que ela desgrude da casca. Esse processo altera muito a textura e o sabor da castanha. Hoje, durante nossa caminhada, encontramos alguns ouriços de castanha, que contem em média 20 castanhas, e são duríssimos de quebrar. Na floresta, somente a cotia com seus poderosos dentes consegue quebrar os ouriços para ter acesso às castanhas ainda com casca. Aliás, os dentes das cotias são tão fortes e afiados que os yanomami os usam para fazer um instrumento semelhante a um pequeno formão, usado para pequenos cortes, como um canivete.

Quebramos alguns ouriços com o terçado e pegamos castanha que fomos comendo pelo caminho. A castanha fresca é mais macia que a seca, e muito suculenta. Quando mastigada solta um leite na boca, muito saboroso, bem diferente do sabor da castanha já seca.

Seguindo o caminho, encontramos um local com uma dezena de pés de cacau. Os primeiros frutos que encontramos e comemos estavam verdes. Comidos assim tem um sabor muito suave, levemente perfumado. Logo encontramos um pé com uma dúzia de frutos maduros. Maravilhoso o sabor deste produto natural da floresta, consumido maduro e fresco.

Ainda pela manhã encontramos um pé de tucumã. Com frutos maduros espalhados pelo chão. Tucumã é uma palmeira que dá frutos de aproximadamente 5cm de diâmetro, com uma fina e consistente polpa de cor laranja intenso com poucos milímetros entre a casca e o caroço. Essa polpa, que é comida crua mesmo, tem um sabor incomparável, e é bastante oleosa. Em Manaus é comum encontrar nas feiras. Com ele é feito o famoso x-caboquinho, um sanduíche recheado de queijo e polpa de tucumã.

E para coroar o dia, os Yanomami encontraram uma palmeira de patauá com frutos maduros. Antes do nosso jantar, de arroz com carne de jacamim, tomamos um delicioso suco, ou vinho de patauá. O fruto lembra o açai, porém de sabor mais suave e cor mais clara, e é preparado da mesma forma: os frutos ficam de molho em água morna durante alguns minutos e em seguida as pequenas esferas devem ser piladas ou amassadas com a mão, fazendo sua polpa se diluir em água. Em seguida coa-se a mistura para separar o suco da casca e dos caroços. Está pronta mais uma delícia amazônica, chamada regionalmente de que pode ser tomada pura ou com farinha.

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Hoje caminhamos 4km, bem que menos que o previsto. Dois fatores contribuíram para isso. O primeiro foi um igarapé maior que encontramos e tivemos que derrubar uma árvore para fazer uma ponte, o que levou mais de duas horas.

Outro fator é que todos já estão visivelmente cansados, depois de seis dias de trabalho. Eu tenho praticamente o trabalho de caminhar e carregar minha mochila. Os Yanomami, no entanto, tem o árduo trabalho de ir abrindo caminho, atividade que eu não tenho a mínima condição técnica e física.

Além disso, o ânimo de meus companheiros já começa a mudar. Fora o cansaço, as nossas provisões começaram a ficar escassas. Ou, melhor dizendo, está acabando a diversidade de comida que trouxemos. Iniciamos a viagem com arroz, farinha de mandioca, flocos de milho, bolacha, café. Hoje nos resta apenas arroz e café. A quantidade parece que é suficiente, mas também não é possível saber, pois os yanomami podem comer muito mais do que nós podemos imaginar. Mas o que mais faz falta mesmo é a farinha, que é o produto que mais se assemelha ao que eles tradicionalmente comem, o beiju, base sua alimentação, pois ambos derivam da mandioca.

No cálculo que fizemos era tranquilamente possível fazer com que a farinha e os outros gêneros durassem até o final da viagem. No entanto, a racionalidade de consumo é completamente diferente da nossa. Nós não-indígenas aplicamos uma racionalidade sobre os nossos bens de consumo, que nos leva a tentar maximizar o seu uso. Os yanomami aplicam uma racionalidade diversa, que tem como resultado o consumo completo daquilo que se tem no momento.

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Soma-se a falta à falta de farinha um profundo corte na perna de Marcos Yanomami e uma picada de formiga tucandeira no pé do Ivan. Os ânimos não vão lá muito bem mesmo.

30/09/2014

Últimos dias da Expedição

Nos deslocamentos pela floresta, quando não há uma trilha já aberta, como é o nosso caso, é preciso que a pessoa que puxa a fila vá abrindo caminho com um terçado. Tarefa extremamente cansativa, que no caso é completado pelos que vem atrás. Todos andam com o terçado em punho, garantindo que a trilha fique limpa e marcada, para que no retorno não seja preciso cortar nada, apenas caminhar.

As trilhas na floresta, além de terem obviamente comprimento e largura, também tem altura. O emaranhado de árvores e cipós se faz tanto na vertical quanto na horizontal. Os Yanomami devem ter uma altura média de menos de 1,60m, e então fazem trilhas compatíveis com seu tamanho. Eu, no entanto, tenho 1,96m, 40cm a mais que um yanomami. Por isso, na fila que vai abrindo a trilha, eu sempre fico com os galhos e cipós mais altos, garantindo que na ida e principalmente no retorno eu economize uma energia substancial não tendo que me abaixar a todo o momento. Imagine: um emaranhado de cipós nos pés, árvores com espinhos por todos os lados, uma mochila pesada e volumosa nas costas, e ainda tendo que se abaixar o tempo todo… Isso exige muita energia e destreza.

Outra economia de energia que tento fazer é a de ter sempre contato visual com alguém em minha frente. O caminho recém feito nem sempre é óbvio, pelo menos para não-indígenas. Isso faz com que tenhamos que dividir a atenção entre procurar o caminho e desviar os pés dos cipós e galhos no chão, a cabeça dos obstáculos pendentes e os ombros das árvores. No fim, ficar procurando o caminho me faz tropeçar e esbarrar em árvore com muita frequência, gastando muito mais energia e tempo.

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Diferente do que caminhar na floresta é o ‘estar’ na floresta. Jorge Pozzobon, no livro “Vocês Brancos não tem Alma”, conceitua muito bem o estado de espírito que é preciso ter na floresta: um estado de “foda-se”. Pozzobon fez pesquisa entre os índios Maku, que vivem nos interflúvios dos afluentes do Rio Negro em seu alto curso. Assim como os Yanomami, os Maku são caçadores e coletores, e por isso partilham de uma série de características. Ambos os povos passam muito tempo em acampamentos na floresta, em busca de alimento, em situações semelhantes como a nossa nessa expedição.

E estar na floresta é estar sujeito a uma infinidade de contingências: animais peçonhentos, animais predadores (onça), machucar um pé ou uma perna, uma árvore que cai em meio a uma tempestade, ou coisas mais leves, como não conseguir caça durante alguns dias, perder um equipamento, molhar os cadernos de campo, rasgar uma mochila, estragar um calçado, uma diarréia… Isso tudo exige uma atitude pragmática, e nos casos em que não há o que fazer para remediar, foda-se.

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Hoje caminhamos cerca de 6km, em ritmo bem forte. Comemos antes de sair, as 07h, e voltamos a comer somente as 18h. De manhã foi um mingau de arroz e a noite arroz com carne de arara. Um contraste com os dias iniciais, em que o cardápio era mais farto. Apesar da grande quantidade de caça na região, os cartuchos que estamos levando estão acabando. Hoje foi um regime de austeridade: pouca comida e caminhada forte. Se tudo der certo e conseguirmos manter o ritmo, em 3 ou 4 dias chegaremos em nosso destino. E o ânimo geral de meus companheiros não é de grande excitação…

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Hoje durante a caminhada avistamos algumas capoeiras antigas, com alguns pés de pupunha, sinal inequívoco de ocupação pretérita de uma comunidade indígena. Meus companheiros de viagem afirmam que era uma roça dos Ninam, que ainda vivem em isolamento voluntário. Dizem que hoje habitam a região das cabeceiras do Igarapé do arame. Informação bem imprecisa, aparentemente sem nenhuma evidência factual. Mas depois de vários dias de caminhada somente hoje o assunto voltou à pauta. Nesse momento estamos na beira do igarapé do arame, exatamente onde as informações que tínhamos localizam esse povo. Mas até o momento temos apenas 2 pés de pupunha como vestígio de que a região já foi ocupada por um povo.

01/10/2014

Dois quilos de arroz e dois cartuchos

O peso da mochila é um dos fatores mais importantes de se levar em conta na preparação da expedição. Com o passar dos dias, cada 100g a mais nas costas parecem pesar uma tonelada.

Na minha mochila levo:

  • para dormir: rede, mosquiteiro, saco de dormir e uns 5m de corda. São os itens mais pesados da mochila. Sempre trago uma rede de algodão, pois não me adaptei a dormir na de nylon, que são um pouco mais leves, mas ainda na escala de grandeza dos gramas e não dos quilos.
  • para vestir: além da roupa do corpo, que consiste em uma calça resistente, uma camiseta de manga comprida de tecido tipo dry fit e coturno, na mochila carrego um short de nylon e uma camiseta de manga comprida para dormir, um par de havaianas, que é calçado logo que paramos para armar acampamento. Manter os pés secos e sem frieiras é uma das tarefas mais importantes no cuidado com o corpo na floresta. A roupa que usamos no corpo é lavada todos os dias. O problema é que dificilmente ela se seca completamente durante a noite, de modo pela manhã sempre a vestimos molhada, um dos piores momentos do dia. Mas logo que começo a caminhar, a umidade da floresta nos faz suar tanto que a roupa se encharca em minutos, tornando então indiferente o fato de que ainda estava um pouco molhada quando vestida.
  • comida: comecei carregando 2kg de comida. Mas o peso vai diminuindo com o passar dos dias.
  • equipamentos: cerce de 30 pares de pilha AA para uso no gps; lanterna pequena e 2 pilhas sobressalentes; 1 netbook para escrever e fazer backup das fotos; 1 bateria sobressalente para o netbook; 1 placa solar dobrável para eventualmente recarregar a bateria do netbook; 1 caderno de campo e canetas; jogo de mapas da região, contendo imagens de satélite e hidrografia.
  • uma bolsa com remédios, curativos, itens de higiene pessoal;
  • prato, copo, colher.

Ainda levo pendurado ao corpo:

  • uma bolsa com máquina fotográfica e tabaco para enrolar cigarros;
  • uma pochete com uma câmera go-pro, 4 baterias sobressalentes, cartões de memória, suporte para cabeça;
  • uma bainha com terçado.

Nada nada, somando todos os itens, o peso fica considerável. E além de tudo isso, quase todos os dias carreguei algum animal recém abatido. Hoje mesmo carreguei um mutum, de mais de 2kg, abatido logo na primeira hora de caminhada, e que após ter suas penas retiradas, me acompanhou durante todo o dia. São 2kg a mais nas costas…

Mas o peso da mochila nas costas assim como outras agruras são tão constantes que acabamos por nos acostumar. Os pés machucados pelo coturno, as inúmeras feridas pelo corpo derivadas do atravessar a floresta, carrapatos em abundância, incontáveis micuins (um carrapato invisível a olho nu, que só é possível identificá-lo depois que chupou sangue, se tornando um minúsculo ponto laranja), os músculos exaustos; tudo parece um pretexto para uma meditação zen. Apesar de tudo isso você está ali, existindo no meio da floresta, e não há nada que se possa fazer para mitigar o desconforto. Então: foda-se.

***

Hoje caminhamos incríveis 7km. O dia começou meio lento. Não estávamos levando nada para o almoço e tudo indicava que o dia seria como ontem: mingau de arroz no café e a próxima refeição somente depois de montarmos acampamento à noite. No entanto, no meio da manhã encontramos um grande bando de queixadas, e apesar de já termos abatido um mutum, Ivan resolveu matar um porco. Tarefa fácil, dado o tamanho do bando. Gastamos pouco mais de uma hora na tarefa do porco: matar, tratar e embalar para viagem.

Depois do meio dia, já começando a se sentir cansados e com fome, os yanomami não resistiram ao carregamento de carne fresca que levávamos. Por mim continuaríamos caminhando, mas depois da alimentação parca de ontem e com tanta carne nas costas, eles não resistiram, e paramos para cozinhar carne e arroz, por aproximadamente 2 horas. Enquanto a carne cozinhava comemos de entrada um delicioso palmito de bacaba e o miolo dos frutos de tucumã verde, com sabor muito parecido com coco.

Já eram quase 15h quando voltamos a caminhar. A vegetação nos ajudou muito, pois era pouco cerrada. Por volta das 17h, quando a luz diminuiu bastante debaixo da copa das árvores, apertamos o passo para encontrar um bom lugar para acampar antes de anoitecer. Isso nos garantiu alguns importantes quilômetros a menos na nossa jornada.

Faltam, para chegarmos às margens do Rio Uraricoera, nosso destino, 17km de viagem. E temos, no máximo, 2 dias de caminhada antes de voltarmos, pois nossas previsões estão no fim. Temos apenas 2 kgs de arroz e 2 cartuchos de espingarda. Isso para avançar 17km e depois retornar aproximadamente 35km, que seria a metade do caminho de volta, onde deixamos um pouco de comida, já pensando nessa volta.

Os Yanomami afirmam que é possível voltar todo o nosso trajeto, que deve ser de 70km, em 3 dias, pois a trilha já está aberta. Mas o fato é que agora teríamos que racionar os 2kg de arroz que temos, mas sei que racionar alimentação não é a melhor qualidade dos Yanomami…

Meu plano para cumprir os 17km que faltam em 2 dias é amanhã tentarmos andar bem, o máximo que conseguirmos, e no dia seguinte sair para caminhar sem desmontar o acampamento, avançando sem peso, para avançar mais rápido, tentando chegar no Uraricoera e voltar para o acampamento antes do anoitecer. Mas esse plano só dará certo se amanhã conseguirmos caminhar bastante, de preferência pelo menos 8km, e se conseguirmos gerenciar os 2kg de arroz que temos para nós 6.

02/10/2014

A sociedade da abundância

Decidimos começar a viagem de retorno. A discussão de hoje de manhã, se deveríamos seguir, mesmo com pouca comida ou se voltaríamos, tendo comida suficiente, me pôs a pensar sobre consumo e abundância na sociedade yanomami. A conclusão é que a abundância é um valor em si. E é maior e com mais sentido que o objetivo de nossa empreitada na expedição.

A abundância como valor pressupõe a possibilidade, sempre real, da escassez, que claramente é mais frequente que a primeira.

Essa ideia casa muito bem com a floresta, com o que vivemos nos últimos dias aqui: um dia você pode ter uma quantidade de carne e no dia seguinte pode passar fome.

E os nossos 2kg de arroz e 4 cartuchos não foram suficientes para aplacar o rechaço à escassez. Teríamos que racionar para vencer os 17km que faltam e ainda voltarmos até onde temos 2kg de arroz estocados, num total de mais de 50km, com 2kg de arroz e no mínimo 4 dias de caminhada. Ninguém topou. A nossa sociedade atribui valor à atingir um objetivo, mesmo com sofrimento. Aliás, atribui mais valor se for sofrido. A sociedade Yanomami, por sua vez, atribui mais valor a menos sofrimento. Parece um pouco melhor, né?

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Voltamos, 19km em 09h de caminhada. Para mim foi um esforço extremo, principalmente pelo relevo acidentado. Para mim, pura yoga: esforço constante, equilíbrio, respiração e uma atenção constante no movimento do corpo, pois se não tiver atenção, com certeza vai se machucar. E hoje foi o dia que mais me machuquei, principalmente no rosto, cabeça e ombro — minha altura e largura, muito diferente dos yanomami, não me ajudam.

Hoje ficou bem clara a diferença entre minhas habilidades e resistência física em comparação com os Yanomami. Até então andávamos devagar, mas hoje andamos muito rápido. Não consigo acompanhar: carregando mais peso que eles, tropeçando constantemente em cipós, desviando de galhos apontados para minha cabeça…

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Cheguei exausto ao acampamento. Amanhã querem sair antes das 06h da manhã. A viagem de volta é sempre mais puxada. Eu já sabia disso, mas não estou aguentando acompanhar o ritmo. Ainda faltam 31km para voltarmos. Faríamos tranquilamente em 2 dias inteiros de caminhada, mas eles querem diminuir ao máximo que conseguem esse tempo. Mas sei que não consigo acompanhá-los. E o nível de ansiedade para voltar, de todos os meus companheiros, é altíssimo. Não consigo nem explicar para eles que preciso de tempo para me recuperar da caminhada de hoje. Espero que eles não se frustrem muito.

Confirmando as ideias sobre a sociedade da abundância: os 2kg de arroz, que eu achei que era possível comer durante 4 dias, foram consumidos hoje. 1 dia. Tudo. 6 pessoas. 2kg de arroz.

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Timóteo, em um momento de descanso durante a caminhada, se deitou em um tronco. Em seus pés a casa de uma jararaca, que logo tratou de se defender: uma dentada na bota de borracha foi o feliz resultado.

03/10/2014

No caminho de volta

Uma caminhada sem fim. Essa era minha sensação. Nem consegui ver o dia passar. Não lembro dos detalhes do caminho.

Pela manhã, somente um café sem açúcar. Durante todo o dia apenas algumas frutas que encontramos pelo caminho, inclusive um tipo de abacaxi silvestre delicioso. Comi também algumas castanhas do Brasil, colhidas no dia anterior. No final do dia, faltando menos de 1km para o local onde iríamos acampar paramos para coletar mel, de um sabor maravilhoso.

No jantar, mutum e inhambu. Passei mal, vomitei. Estou precisando de um pouco de repouso. Amanhã é o último dia de caminhada.

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Nesse caminho de volta, vários dos igarapés que passamos na ida, secaram bastante. Estamos no início da época seca em Roraima, que vai do mês de setembro ao mês de abril. A época chuvosa foi muito fraca essa ano, indicando que teremos um verão severo. E um verão severo significa uma séria ameaça a essa região onde estamos, altamente suscetível a queimadas, pois além de estar muito próxima de uma região de transição savana x floresta, está na fronteira do desmatamento, que vem crescendo exponencialmente no Estado de Roraima.

Apesar de não termos encontrado nenhuma evidência de invasões na TI Yanomami nessa região, a fragilidade dela ficou clara. As grandes manchas de helicôneas em meio a floresta, vestígios de queimadas na década passada, nos mostram como é preocupante esse verão seco ainda mais somado ao fato do aumento da pressão do desmatamento desenfreado, principalmente ao sul de onde estamos.

Assim, uma ação coordenada dos órgãos de fiscalização, Funai, IBAMA e ICMBio, é de importância extrema para manter preservada essa região importante para manter o equilíbrio sustentável das comunidade na TI Yanomami.

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Amanhã é o último dia de caminhada. Corpo já cansado, não conseguiu segurar o arroz com mutum de nosso jantar. Mas com certeza ainda com um pouco de energia para a arrancada final. 07 horas de caminhada e depois um merecido descanso…